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A(s) Porta(s) Aberta(s)

Alguns negócios resistem à mudança dos tempos. Aliás, algumas pessoas resistem-lhe e, persistentes, continuam a trabalhar naquilo que dizem dar-lhes tanto prazer – o comércio.

Braga. Avenida Central. Nº 177. “A Negrita. Só cafés. Desde 1948” – lê-se no letreiro. A dona Maria sai de lá já com um sorriso, depois de ter entrado furibunda. Não é que afinal tinha sido o marido a “enganar-se”? Como a dona Sameiro, pacientemente, lhe explicara, e comprovara, o seu marido tinha pedido cevada, em vez do habitual café do lote de S. Tomé. Achou que não haveria diferença entre os dois produtos e comprou o mais barato, em vez daquele que a esposa lhe pedira. Mas a diferença é grande e a dona Maria, depois de entrar furibunda, sai satisfeita com o seu café do lote de S. Tomé, moído na hora e meticulosamente embrulhado em papel.

 

Esta é só uma das muitas histórias a que a loja assiste diariamente desde que abriu portas há 66 anos. Mas muitos mais estabelecimentos do centro de Braga guardam histórias semelhantes há tanto ou até há mais tempo que a Negrita. Para além da idade e das histórias que guardam, essas lojas partilham a sua resiliência. Passam tempos difíceis e, todos os dias, vão resistindo às mudanças, à evolução.

Desde há dois mil anos que muitos transeuntes, em passeio ou em trabalho, deambulam pelo centro, agora histórico, da cidade de Braga. Contudo, atualmente, o panorama é algo diferente. As ruas já não são calcorreadas por tantos pés e as lojas tradicionais já não atraem tantos clientes como outrora.

O projeto de tornar a cidade de Braga num “centro comercial ao ar livre” foi, desde a última década do século XX, um desejo dos responsáveis políticos locais, nomeadamente daquele que foi por quase quatro décadas Presidente da Câmara Municipal, Mesquita Machado. Para tal, aumentou-se a sua área pedonal, que atingiu assim os 130 mil metros quadrados. No entanto, o objetivo de atrair mais população, mais consumidores ao centro não se concretizou. 

 

Segundo o senhor Adriano, “esta rua era muito movimentada. Desde que tiraram o trânsito, o movimento terminou”.

Na rua do Castelo, mantêm-se de pé, no mesmo sítio, a Torrefacção Bracarense e o senhor Adriano, o funcionário mais antigo da casa, após todo o desenvolvimento da cidade. 

 

A loja pode ter-se modernizado, mas permanece no mesmo local, aberta e em funcionamento desde 1930.

Quando se entra, a primeira coisa que se vê e se ouve é o senhor Adriano. Está à porta, sorri, conta 

histórias, mas primeiro que tudo trabalha. Na mesma casa há 44 anos. É uma caricatura do típico vendedor. De bata branca, recebe os clientes e cumprimenta-os com um gracejo. E até recebe visitas, e mais, amigos, que nada querem comprar e lá vão apenas para dois dedos de conversa. O senhor João é uma dessas pessoas. “Estou aqui só para conversar. Não tenho nada que fazer e venho para aqui”, diz-nos. 

 

A Torrefacção em si pode não ser uma casa diferente das outras, mas tem certamente um travo especial. Agora o Hospital de Braga já não se encontra no centro da cidade. Agora é diferente, as máquinas de moer café continuam lá desde 1930, mas já não trabalham. Vendem-se agora bolachas, vinho, produtos de charcutaria e alguma mercearia. A Torrefacção Bracarense é agora um antigo renovado.

Na rua paralela, com tetos descascados, encontra-se mais uma prova de resistência, a Casa das Velas, fantasmagórica e decadente de uma forma pouco usual hoje em dia. O ambiente impõe uma alteração de postura, ombros erguidos, vozes sussurradas, contemplação, seriedade.

Velas por todo o lado, tapetes enrolados num canto e figuras de cera brancas sem vida em prateleiras altas. Tudo contribui para dar a esta casa uma aura religiosa. Incluindo o senhor 

José, que, apesar de simpático, não é muito expansivo. Fala baixo e serenamente, não gesticula, nem se movimenta.

É tal como a loja que herdou.

“Isto, infelizmente, está cada vez mais deserto. Para cada vez menos gente aqui. Depois destas obras que fizeram na cidade, o cortar o trânsito aqui e a dificuldade de estacionamento - tudo tem prejudicado muito o comércio aqui no centro”, afirma no seu tom calmo e monocórdico, mas com um pesar na voz.

Como refere o proprietário da Casa das Velas, apesar de Braga dispor de dois parques de estacionamento, localizados no coração da cidade, e de quase todas as suas ruas terem locais de estacionamento, há um senão: estes têm de ser pagos pelos consumidores. E estes não se mostram dispostos a pagar os montantes exigidos, quando podem fazer as suas compras no centro comercial sem pagar pelo estacionamento.

Atenta a esta realidade, a Câmara Municipal tentou revogar o negócio de concessão da exploração dos parques a uma empresa privada, sem sucesso. Assim sendo, tem tentado realizar iniciativas em parceria com outras instituições da cidade, de forma a atrair as pessoas de novo para o centro. A “TUB Natal” é um exemplo recente de um desses projetos. Também em colaboração com a Associação Comercial de Braga (ACB), os Transportes Urbanos de Braga (TUB) estão a disponibilizar viagens até ao centro histórico a partir de diversos pontos da cidade ao preço de um euro, durante a época natalícia.

 

“Assisti a uma diminuição de negócio nos últimos anos por via da crise, mas não propriamente de clientes”, explica o senhor Fernando, o gerente das Frigideiras do Cantinho.

E de facto, na “casa mais antiga da cidade de Braga neste tipo de atividade”, a atmosfera é cheia de vida. As Frigideiras do Cantinho abriram em 1796. Apesar da sua idade avançada, este estabelecimento mantém-se em movimento e adapta-se aos tempos modernos para se manter vivo. O seu chão envidraçado pelo qual se podem observar algumas ruínas romanas é parte manifesta deste espírito. “Desde 1997, além da parte da restauração, cafetaria, também somos um museu”, constata o gerente.

Os “olás” contantes, acompanhados de um sorriso simpático do senhor Fernando também contribuem para o ambiente acolhedor que se sente neste espaço. Como não podia deixar de ser, as típicas 

frigideiras circulam a toda a hora, bem como alguns produtos de pastelaria, e as conversas, gargalhadas e o barulho metálico dos talheres são ruído de fundo permanente.

Esse barulho metálico encontra-se também na rua de São Marcos, mais especificamente na Barbearia Vasconcelos. Mas desta vez causado por tesouras, manuseadas com perícia pelo senhor Xavier, já com 50 anos de profissão.

Nesta loja, com 108 anos de idade, somos transportados para uma época talvez não tão longínqua, mas ainda assim desconhecida para a maioria. As cadeiras antigas, resistentes, o sofá de espera em pele e até os utensílios utilizados e meticulosamente expostos, os vários recortes 

de jornais também expostos, comprovativos da antiga e aclamada vida deste estabelecimento. Ouvem-se ainda histórias no ar – fala-se dos tempos passados, da atualidade e das mulheres que lá não estão – e o “senhor Bigodes” ouve-as e guarda-as com a mesma atenção e gosto.

Trabalhando neste estabelecimento há já 42 anos, o senhor Xavier fala com conhecimento de causa acerca da situação que se vive na barbearia e também no centro, em geral. “Desde que saiu o Hospital [de São Marcos], o negócio ficou mais morno. Não há tanto movimento como havia aqui há uns anos atrás, mas, no que diz respeito à casa, continuamos sempre a trabalhar bem”, diz, indo ao encontro da opinião veiculada pelo senhor Fernando.

Porém, alguns estudos demonstram que o Hospital trazia diariamente entre 10 a 11 mil pessoas ao centro da cidade. Apesar de estes dois negócios não poderem apontar a deslocação deste hospital como um grande problema - talvez por já serem mais conhecidos e estabelecidos - o presidente da ACB, Manuel Barbosa, diz que os comerciantes sofrem com a mesma. “É preciso chamar à responsabilidade quem governa o país porque fazia falta o estudo do impacto da mudança do hospital e também fazia falta um plano de emergência económico para o nosso sector” chegou a declarar depois da abertura do novo hospital numa área mais periférica.

Além do próprio hospital, todos os entrevistados apontam ainda como fator problemático a inexistência de quase todos os serviços públicos no centro da cidade, sendo, praticamente a única exceção a Câmara Municipal, o que obviamente afasta a população do centro, afetando de forma negativa os seus negócios.

O atual presidente da Câmara de Braga, Ricardo Rio, que se candidatou com a promessa de revitalizar a cidade, mostrou preocupação com esta realidade. “É preciso promover uma verdadeira regeneração urbana em que não se andem a substituir pedras de 15 em 15 dias, mas que permita trazer mais pessoas para viver no centro e mais comércio na zona”, afirmou na altura da sua candidatura, em 2013.

Todavia, o mandato ainda vai no primeiro ano e ainda não são visíveis muitas mudanças. Como tal, os comerciantes continuam a lutar para sobreviver aos obstáculos que lhes têm sido colocados no caminho ao longo dos últimos anos. Incluindo a crise económica, à qual todos os entrevistados fizeram referência.

Mas uma coisa é certa: todas estas lojas são singulares, pelo menos na era em que vivemos. Competem, direta ou indiretamente, com lojas de marcas internacionais, grandes empresas, quase todas elas muito mais novas e poderosas. O que as distingue dessas marcas é a relação com o público, muito mais próxima e pessoal.

Estes lojistas recebem os seus clientes com gosto e estabelecem um laço de confiança com os mesmos. Eles sentem-se à vontade - muitos já frequentam os estabelecimentos em causa desde crianças. “Estes meus amigos, e donos desta casa, são simpáticos. Além de nos oferecerem de vez em quando um Porto e uns bolinhos de bacalhau, são simpáticos e trabalham bem”, esclarece o “cliente mais antigo” da Barbearia Vasconcelos, entre risos.

E, como quem corre por gosto não cansa, todos os dias, estes comerciantes escolhem manter as suas portas abertas. Todos os dias, vão desfazendo confusões com paciência, ouvem histórias partilhadas pelos seus clientes, que também são seus amigos, e assistem a peripécias – como quando a dona Rosa caiu dentro da arca frigórica da Torrefacção e o senhor Adriano teve que a “resgatar”.

Enfim, é como diz o senhor Fernando, “a Igreja e o comércio são as pessoas”.

Em colaboração com João Lopes, Jorge Nicolau, Sara Silva e Stéphanie Cunha.

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